A exploração de terras raras no Brasil, um grupo de minérios usados na alta tecnologia e alvo de interesse dos Estados Unidos, afeta ao menos 41 áreas protegidas na Amazônia Legal, entre terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação ambiental.
Uma delas é o quilombo Kalunga do Mimoso, no sul do Tocantins. Três processos de mineração da empresa Brasmet Exploration Participacoes Ltda estão integralmente dentro da comunidade.
Terras raras são um conjunto de 17 elementos químicos, como neodímio, escândio e praseodímio, usados na produção de ímãs para turbinas eólicas, carros elétricos, indústria aeroespacial e bélica. O Brasil tem a segunda maior reserva no mundo, atrás apenas da China. A Agência Internacional de Energia projeta um crescimento da demanda por terras raras entre 50 e 60% até 2040.
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A ANM (Agência Nacional de Mineração) já deu sinal verde para o início das pesquisas no Kalunga do Mimoso. Os quilombolas, no entanto, não foram consultados e sequer sabiam da existência da demanda por terras raras em seu território até o contato da reportagem.
“Não temos conhecimento dessa pesquisa. Fiquei surpreso”, relata Eudemir de Melo da Silva, vice presidente da Associação Kalunga do Mimoso.
Os polígonos requeridos pela empresa somam 5.049 hectares, aproximadamente 7 mil campos de futebol, ou quase 9% do território quilombola.
A mineração dentro de quilombos não é ilegal, porém, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), ratificada pelo Brasil, determina que as comunidades sejam consultadas previamente a respeito de atividades econômicas que afetem seus territórios.
“Ainda que seja uma pesquisa minerária não invasiva, as empresas não podem lotear o território das comunidades sem consulta”, analisa Rodrigo Magalhães Oliveira, pesquisador da Universidade de Brasília. Ele lembra que, em 2020, a Justiça ordenou o cancelamento de requerimentos minerários em fase inicial sobrepostos a terras indígenas no oeste do Pará.Continua após a publicidade
Cerca de 270 famílias vivem no quilombo Kalunga do Mimoso, localizado entre os municípios de Arraias e Paranã, em uma região de transição entre o Cerrado e a Amazônia. “O nosso estatuto prevê a coletividade de todas as decisões. Espero que eles [empresa] repensem. A comunidade não tem interesse em mineração”, afirma Silva.
Na Amazônia Legal, os pedidos para mineração de terras raras somam 157 solicitações (5% do total). Em tamanho, porém, as áreas cobiçadas no bioma representam 17% de todos os polígonos com requerimentos sobre terras raras no país. O levantamento foi feito pela Repórter Brasil, com apoio da Rainforest Investigation Network (Pulitzer Center) e do grupo PoEMAS, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Na segunda-feira (4), o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), afirmou que o Brasil pode discutir a inclusão das terras raras nas negociações das tarifas impostas pelos Estados Unidos. O país já havia sinalizado o entusiasmo nas reservas brasileiras no final de julho, quando o encarregado de negócios dos EUA no Brasil, Gabriel Escobar, declarou que o governo Trump tem interesse nos minerais estratégicos – terras raras entre eles.
O que diz a Brasmet
A Brasmet tem outros pedidos para explorar terras raras sobrepostos ao quilombo Kalunga, em Goiás, vizinho ao Kalunga do Mimoso. Localizado do outro lado do rio Tocantins, na divisa que marca os limites da Amazônia Legal, é um dos maiores territórios quilombolas do Brasil.Continua após a publicidade
“Em nenhum momento fomos notificados. A violação maior é as comunidades não saberem o que está acontecendo em relação às próprias vidas. Isso é gravíssimo”, afirma Vercilene Dias, coordenadora da assessoria jurídica da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e assessora da Associação Quilombo Kalunga. “É uma violação o Estado aprovar uma pesquisa e não notificar a associação que representa o território”, diz.
A reportagem entrou em contato com a Brasmet, uma empresa ligada ao fundo de investimentos Ropa, com sede em Gibraltar. Dedicado a investimentos em mineração, o fundo promete, em seu site, “promover relações positivas com as comunidades locais” e assegurar compromissos com elas.
O representante legal das duas empresas no Brasil, Alexandre Galvão Olímpio, confirmou à Repórter Brasil a sobreposição dos requerimentos minerários com o território quilombola, e disse que até o momento a empresa realizou “levantamentos geológicos de superfície, sem qualquer intervenção física no meio ambiente”.
“Não há obrigação legal de consulta prévia às comunidades locais para a realização deste tipo de atividade, que é considerada de baixíssimo impacto, não ensejando qualquer modificação física da área ou interferência nos modos de vida locais”, declarou o representante da empresa, por email (veja o posicionamento na íntegra). O fundo foi procurado diretamente pela Repórter Brasil, mas não retornou até a publicação desta matéria.
ANM autorizou pesquisa sem conhecimento dos quilombolas
Os requerimentos da Brasmet foram protocolados em março de 2024. Em abril, ao analisar os processos, a ANM reconheceu que os polígonos estavam sobrepostos às comunidades quilombolas.Continua após a publicidade
“Caso V.Sa. não manifeste expressamente sua desistência do requerimento de autorização de pesquisa no prazo de 10 dias após o recebimento deste comunicado, o processo tramitará normalmente”, afirma a ANM em ofício enviado à empresa em maio do ano passado. Dois meses depois, a agência concedeu o alvará de pesquisa, válido por três anos. Nesta etapa, são feitas pesquisas para avaliar a incidência e a qualidade do minério na região.
Contudo, especialistas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam que a fase de pesquisa já tem potencial para causar impactos ambientais e sociais nos territórios, o que obrigaria a consulta às comunidades.
“Como há sobreposição aos territórios quilombolas, essa decisão de aprovar a pesquisa por parte da ANM não deveria ser feita sem a consulta”, afirma Mariel Nakane, assessora técnica do ISA (Instituto Socioambiental). “A pesquisa é o primeiro passo para uma possível futura exploração mineral dentro do território”, acrescenta.
“Apesar de ser menor do que a lavra (exploração), a pesquisa também gera um dano ambiental”, reforça Bernardo Meyer Cabral Machado, do MPF-TO (Ministério Público Federal do Tocantins).
“É uma falha da etapa de pesquisa de não ter a consulta”, concorda Juliana Siqueira Gay, engenheira ambiental e professora no Departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental da USP.
É o que defende Vercilene Dias, assessora jurídica da Conaq. “A consulta deve ser iniciada assim que for feita a solicitação para pesquisa minerária”, diz.Continua após a publicidade
A ANM foi questionada pela reportagem sobre a necessidade de consulta às comunidades afetadas na etapa de pesquisa, mas não respondeu.
Mineração em terras quilombolas
No caso dos quilombos, além da Convenção 169 da OIT, o artigo 68 da Constituição Federal garante o direito das comunidades sobre o território, afirma Vandeli Paulo dos Santos, coordenador da Conaq.
O quilombo Kalunga do Mimoso ainda está em processo de titulação. A comunidade foi certificada pela Fundação Palmares em 2005 e, em 2010, o governo federal decretou a desapropriação e criação do território com 57 mil hectares.
“A não demarcação do território não pode ser impedimento ao exercício de direitos pela comunidade. Assim, os processos têm que observar as mesmas regras dos territórios demarcados”, reforça Álvaro Manzano, procurador-chefe do MPF-TO.
Fonte: UOL